Você me pergunta quem sou. Por Allan X. Brito

                         

Hoje eu sou arrebento-copos e vira-mesas, hoje eu sou sumo, vigio o vento, venho chispado e vejo no escuro. Hoje eu desopilo e desentrevo. Hoje eu me-amo, me-armo e miasmo. Hoje eu defenestro as escolopendras e desdouro os numismatas. Atentem para meu grito: Cuidado, homens de bem! Os sipunculídeos já invadiram as praias!”.
- S.X. em O Que-Se-Chamava.


Você me pergunta quem eu sou. É uma indagação difícil de responder. Posso passar horas tentando lhe dar uma resposta, traçar um perfil ou elaborar um prospecto, e, ainda assim, você não terá a menor ideia de quem sou. Não conseguirá entender quem eu sou.

E provavelmente fará um julgamento rápido - pois assim nossa mente foi condicionada para a sobrevivência - baseado nos valores em que acredita e no resultado de todas as suas experiências. Ou seja: você me definirá por sua própria existência, crenças e padrões.

Sem querer incorrer em teorias filosóficas, mas, mesmo assim, desejando dar um quê de misticismo, de mistério, eu tentarei traduzir as páginas do meu eu, num esboço desajeitado, mas vigoroso, de uma resumida autobiografia.

Nasci em determinada família, cresci em contado com certas pessoas, devorando histórias, aprendendo o que é o amor, o medo e a dor. Tornei-me homem no que defino como os três aspectos essenciais: ter mais de 18 anos, fazer amor com uma mulher e prover meu próprio sustento. Esse é o aspecto sociofamiliar e que não significa nada se observado isoladamente.
Na verdade, discuto seriamente a validade da definição de um indivíduo por seu sangue. Será que a carga genética do ser humano tem o absoluto poder de determinar o que é e como age um ser humano? Será que determinada característica ou atitude de uma pessoa pode ser aplicada a todo um grupo? Será que existe um povo bravo por natureza. Ou sábio? Ou pacífico? Indolente?
A própria história diz que não, nenhum povo é mais isso ou mais aquilo. O povo brasileiro crê que é um povo geralmente descontraído e divertido. Mas, segundo pesquisas, vários países também se acham assim. Essa é apenas uma impressão, seja interna ou externa, utilizada para definir grupos sociais com suas características aparentemente preponderantes.
Acredito que cultura, as tradições e os costumes influem mais do que a dubiedade da herança fisiológica. Os filhos se comportam conforme foram criados. Mas aí também aparece uma falha: sempre há exceções. Como dois irmãos criados da mesma forma, sob as mesmas crenças, os mesmos dogmas, mas que, quando adultos, apresentam personalidades tão diferentes entre si, quanto a água e o óleo: não se misturam.
Assim chegamos à questão: além do sangue, além da cultura, há outro fator que influi na idiossincrasia humana? Sim. É o que, em sânscrito, chamam de Karma. É a sina. É o Código Pessoal, muitas vezes secreto, outras vezes tão acessível quanto um livro aberto. Aqui ainda há o viés social: profissão, vocação e missão. César Souza, em seu livro “Você é do tamanho dos seus sonhos” levanta algumas questões muito interessantes quanto a esses três
Então, segundo meu Código Pessoal, minha profissão é advocacia bancária, minha vocação é a escrita e minha missão é a aventura. Lindo, mas ainda não expõe minha mais pura essência. É isso o que sou?
Bem, minha vida também poderia ser resumida em termos líquidos: sou sangue, suor e lágrimas. Ou astronômicos: nascido no planeta terra, sistema solar, Via Láctea, CEP intergalático, em um dos vários universos possíveis dentro da realidade do Big Bang.
Eu poderia tecer um conceito sutilmente poético, do tipo:
“Eu sou o sakabatou. Meu sangue é dos irados empedernidos. Da linhagem paterna, sou o sexto desses varões, primogênitos orgulhosos. Homens de fé, não no sentido religioso da palavra, mas que acreditam em alguma coisa que não podem ver ou explicar. Passíveis de condenação dos piores crimes. Cometedores de muitos e execráveis erros. Mas quando lutam por Justiça, não há iguais. Eles são assim. Nós somos assim. Seja pela mistura das raças, seja por desígnios sagrados.
Incompreendidos, acostumamo-nos com as coisas lançadas contra nós. Andamos altivos pelas ruas e à vista das pessoas, mas somos circunspectos. Estranhos, mesmo. Ora amados, ora temidos. Temos a chama da verdade refulgindo nos olhos e no esgar de caninos escuros.
Talvez as estações que passam e trazem suas próprias dores, cores e prazeres, e o suor da labuta inerente, nos modifiquem. Talvez mudemos, talvez continuemos assim, os mesmos, anos a fio”.

Poderia fazer uma classificação adjetivo-musical-pós-contemporânea: 

- Sou um moreno alto, bonito e sensual; Sou eu, caçador de mim e sou a placa da contramão. 

- Eu sou um porto amigo sem navios; um mar, abrigo a muitos rios. Eu sou apenas o que sou. 

- Talvez eu seja, no seu passado, mais uma página que foi, do seu diário, arrancada. 

- Eu sou aquela luz que se apagou, sou um vento forte que não levou a poeira do chão, nem as nuvens do céu. 

- Eu sou neguinha.

- Ara, ara, eu sou Ara Ketu, Ketu Ketu Odé Obá Nixar. 

- Sou semente negra, raiz tuberosa, aguada em verso e prosa na cacimba de belá. 

- Eu sou você amanhã; sou do nordeste, cabra da peste; Eu sou desses que não é daqueles que… Je ne suis pas suas negas. 

- Luke, eu sou seu pai.


Matematicamente? Uma estatística. Um número redondo em milhões de alternativas, infinitas possibilidades. Ou uma charada envolta em mistério, dentro de um enigma.


Quem sou eu? Sou um filho de Deus e o maior milagre do universo. Sou notívago. Arrebatado. Irascível. Apaixonado. Paradoxal. Leitor. Inseguro. Poeta. Temeroso. Gênio. Louco. Discreto. Desatento. Compenetrado.


Quem sou eu? Ora, veja, sou um galalau espadaúdo de notáveis ilhargas. Ao mesmo tempo sou supercalifralistiexpialidoce e ensimesmudo. Sou o réprobo iliterato no óbito diário das horas.


Sou uma tarde fria e chuvosa. Sou manhã de sol na praia. Sou o brilho dum lago de águas cristalinas e seu reflexo noturno de estrelas. Sou música e dança. Sou louvor e adoração. Sou recato e pesadelo. Sou saudade e devoção. Sou lembrança e esquecimento. Sou som e fúria. Sou fogo e trovão.


Sou meu maior oponente, contra quem travo a maior batalha de todos os dias. Sou uma alma permeada de fé, descrente. Amálgama e antípoda. Plenitude e vazio. Pico de rocha, leito de rio. Sou todas as histórias ditas e escritas, imanentes ou esquecidas. E as que surgirão. Sou o eu lírico à janela, no poema Tabacaria de Fernando Pessoa. Sou tudo e tudo reside em mim, e sou nada – nada, nada. Mas tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Eu sou o irrequieto, indefinível e ininteligível na diuturna busca pelo divino, o inefável. Nisso tudo, e em outras tantas coisas, sou único.

É isso, então: Eu sou único.

E você? O que você é? Escreva na linha a seguir: ÚNICO. Isso, do latim “unìcus”, “unìca”, “unìcum”. Único, singular, raro, exímio, notável. Como uma sinfonia de Beethoven, como caminhar na lua, como um Grande Amor, como ler um bom livro, deitado numa rede, em dia de chuva. Como rir, dançar e amar. Amigos. Sentir a presença de Deus. E qualquer outra coisa como a luz e a vida.

Enfim, é isso.

Encerro este meu singelo solilóquio citando um grande poeta, Tennyson, que escreveu muito melhor que eu, em minha livre tradução:


“E apesar de muito ter sido tomado, muito mais permanece;
e apesar de não sermos mais aquela força com a qual nos velhos dias
movemos céu e terra: nós somos o que somos;
A mesma têmpera de corações heroicos,
enfraquecidos pelo tempo e pelo destino, mas fortes na vontade
de lutar, de buscar e encontrar - sem se curvar”.



***

"Os romancistas da moda sempre têm dois ou três nomes, todos pomposos. Eu não. Eles têm dezenas de teorias lexicais na ponta da língua, escrevem sobre dejetos orgânicos e são aclamados por isso. Eu, não. O que eu sou, ou penso ser, pelo menos nas horas vagas: um inventor de histórias".

- S.X. em Do Que Se Trata.




Crédito da Imagem:

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